A personagem
Mulher entre os vinte e cinco e os trinta e cinco anos, expressiva,
ágil, com boa mímica, flexibilidade nas diferentes posturas.
ÚNICA CENA
Sala dividida em três partes. À esquerda, janela, cadeira,
óculos, girassóis, corda de saltar, jogos de infância,
lápis de cor e papel branco, livros, bonecos de pano com nomes,
quadro preto e giz, de tamanho desproporcionadamente grande. Do lado da
janela, o chão pintado de branco, do lado do quadro preto, pintado
de preto. Ao centro, espelho, cosméticos, livros, tábua de
passar a ferro, uma almofada vermelha em forma de coração,
figuras de heróis coladas na parede, aparelhagem de som, tudo colorido.
À direita, ringue de boxe, luva de boxe, labirinto ou puzzle, prateleira,
mesa de trabalho, livros, tudo cinzento.
MULHER
(coloca-se perto do limite entre a cor branca e a cor preta pintadas
no chão) Sei que há dois mundos completamente diferentes
Sei que não os posso misturar
Um é o meu mundo
(pisa a cor branca)
o outro é o deles
(pisa a cor preta)
Aqui posso andar à vontade
respirar à vontade
rir à vontade
ver o que se passa lá fora
construir histórias
Aqui tenho que andar com muita cautela
procurar perceber o que devo fazer como devo fazer
mesmo que não perceba porquê
Não me posso confundir nestes dois mundos
posso ser agredida ou perder-me nesse labirinto e não encontrar
a saída
Também me podem destruir se eu não tiver cuidado
Quando não percebemos o que eles querem então é que
estamos verdadeiramente arrumados
Não estou a exagerar coisíssima nenhuma
Sei do que estou a falar
Às vezes distraímo-nos e cometemos um pequeno lapso e eles
fazem logo uma barulheira que isto e que aquilo
colocam-nos logo entre a espada e a parede e não vêem que
aquilo não tinha importância nenhuma
E atiram-nos logo para cima classificações que passam a servir-nos
de identidades emprestadas que não têm nada a ver connosco
(Escreve alguns conceitos no quadro negro: DISCIPLINA, OBEDIÊNCIA,
ORGANIZAÇÃO)
A escola foi a minha estreia no mundo deles
Aqui só há equívocos
A escola impõe-se como uma prisão
mas há sempre uma maneira de lhe escapar
e a nossa sobrevivência vai depender da nossa imaginação
A partir daqui estamos sozinhos
completamente desamparados
A família prende-nos com chantagens afectivas a um local
a um modo de agir a um modo de sentir
A escola é um deserto de afectos e de ideias
dela só me ficou o medo a angústia o tédio
Começam por nos disciplinar a vida
espremem-nos a paciência até ao limite do admissível
A alegria e a espontaneidade são alvos a abater
O melhor é dar-lhes o que eles querem
uma dose de conformismo até ao limite do suportável e outra
dose de masoquismo para lhes alimentar a ilusão do poder
Mas nunca nos deixarmos domesticar
Nunca
Nunca
(Aproxima a cadeira da janela para onde trepa e se debruça)
Sei de cor o perfil das montanhas
sei de cor os rituais de domingo
gosto desses rituais
fascinam-me as expressões como a "vida eterna"
Nessas alturas especiais as pessoas são quase compreensíveis
e interessantes
Os cânticos tradicionais
as rosas de Maio
Para mim a Senhora será sempre "toda bela"
como os príncipes e princesas que desenho nos cadernos escolares
"livre de todos os perigos" do mundo deles
(Aproxima-se dos girassóis que começa a desfolhar)
Porque será que destruímos as coisas que tentamos compreender?
Gosto de observar as pessoas
não compreendo o que dizem
nem como vivem e se relacionam entre si
mas gosto de as ver, de as ouvir
o som das vozes, certas palavras, entoações, risos
Gosto de observar as pessoas que trabalham com as mãos
No trabalho físico vêem-se logo resultados
As pessoas que trabalham com as mãos sempre me fascinaram
(Pega num dos cadernos e senta-se ruidosamente no chão)
Perguntam-me porque desenho príncipes e princesas
Nas minhas histórias tudo lhes corre bem
são os únicos que se conseguem subtrair a essa fatalidade
a que todas as pessoas estão fatalmente condenadas
e são muito mais interessantes
têm vidas aventurosas em que enfrentam os perigos e levam sempre
a melhor
e casam no fim e acabam sempre por viver muitos anos felizes
Para mim que tento imaginar-me no futuro e não consigo
que pergunto às pessoas como se encaixaram na vida
que me fascinam com as suas histórias
casamento, filhos, crescimento dos filhos
(Aproxima-se do centro da sala)
Crescer é horrível
sob todos os pontos de vista
Tudo o que fazemos, tudo o que dizemos
tudo o que sentimos
é logo catalogado naquele nome horrível
e se não dizem o nome é "aquela fase"
como se tivéssemos apanhado "sarampo" ou qualquer coisa
do género
de repente deixamos de ter uma ideia própria e de a podermos exprimir
não nos basta todas essas emoções contraditórias
ainda temos que suportar essa despromoção inglória
essa classificação terrível
como uma "doença"
(pega numa almofada em forma de coração)
Na verdade ninguém gosta de ouvir determinadas coisas
toda a gente prefere manter essa paz artificial em casa
é por isso que a nossa energia é logo considerada "doente"
posso mesmo dizer que talvez haja uma pontinha de inveja
porque vivemos mais intensamente
É só uma questão de tempo
"cortam-nos as asas"
não de um único golpe mas a pouco e pouco
e só descansam quando nos parecemos com eles
"adaptados" devia ser a verdadeira "doença"
porque eles têm tudo sob controle
(fixa a plateia, ainda de almofada à sua frente)
Eles controlam tudo
o amor, os filhos, as amizades, as viagens
tudo controlado
já não há intensidade ou o quer que se pareça
no que fazem ou dizem
por isso a nossa intensidade é uma ameaça constante
(afaga a almofada)
O amor não dura tempo suficiente
nem é suficientemente forte
para evitar que sejamos domesticados
por isso nunca esperei muito do amor
acaba por se tornar domesticado
com horários e locais próprios
e isso é o pior de tudo
ver o amor morrer nessa vida cinzenta
e não poder fazer nada
vê-lo morrer
por isso nunca esperei por esse momento dos horários e dos locais
e das coisas certas
porque a vida já é suficientemente horrível e organizada
em horários e locais
Tudo menos matar o sonho ou o amor que é da mesma matéria
do sonho
(aproxima-se do espelho e fita-se nele)
Vamos ter muito tempo para deixar de nos reconhecermos
o nosso próprio rosto
o que nós pensamos que somos
o que amamos, até a cor dos nossos sonhos
(Aproxima-se do ringue de boxe e experimenta a luva que olha demoradamente
e retira depois com um ligeiro sorriso)
É isto que nos ensinam embora lhe chamem outras coisas
Já viram coisa mais primária para toda uma sociedade?
Quando se fala em competição, num "lugar ao sol",
de que se trata senão de vestir a luva?
Até nos relacionamentos amorosos vale a técnica da luva
em tudo o que eu consiga associar ao que eles consideram próprio
de um adulto "adaptado"
em tudo em tudo
(passeando pelo ringue de boxe)
Agora para iludir essa técnica da agressão criaram umas teorias
a que eu chamo de "agressão camuflada" ou "agressão
pelas traseiras"
há até congressos sobre isso muito modernos
o último grito
ensina-se às pessoas como ser "assertivas" o que quer
dizer tentar resolver as diferenças através de cedências
mútuas
e tentar acertar o passo umas com as outras
Imagine-se até onde isto nos poderá levar
Quando não se chamam as coisas pelos nomes próprios
onde é que vamos parar?
(senta-se na cadeira perto da mesa, depois levanta-se e coloca-se de
pé virada para a plateia)
Sabem que há duas versões para terminar este monólogo?
Uma é de tonalidade mais dramática
outra mais cómica
mas para mim não faz qualquer diferença porque o dramático
é irremediavelmente cómico e o cómico insuportavelmente
dramático
Portanto como vêem pegue-se por onde se pegue vai tudo dar ao mesmo
(colocando-se em posição de sentido)
O melhor é utilizar as duas versões
Primeiro a versão dramática
(enquanto se dirige para o lado esquerdo da sala)
Dirijo-me de novo ao início do meu trajecto
ah, a janela, lembram-se?, aberta sobre essas montanhas
que amámos
esse ar puro que entra na sala
tudo o que amámos
fecha-se a janela
(fecha a janela ruidosamente)
Há alguma coisa mais dramática que uma janela fechada?
(pega nos lápis de cor que destrói, nos bonecos de pano
que destrói um a um, apaga as palavras do quadro negro)
Já decorámos tudo isto
a bem dizer já matámos tudo o resto em nós
que nem precisamos que nos lembrem nada disto
(dirige-se ao espelho que volta ao contrário)
que importa, este rosto já não sou eu
(enquanto retira da parede as figuras dos heróis)
retiram-se da parede as figuras dos heróis
tudo em que acreditámos lá vai
(enquanto olha demoradamente para a almofada)
ah, o coração, o mais difícil de destruir
onde nos dói mais
(destrói a almofada)
Capitulámos sem dignidade
e isso é o mais horrível de tudo
isso é que torna tudo insuportável
(aproxima-se da mesa e senta-se, depois levanta-se e coloca-se de pé
virada para a plateia)
Esta era a versão dramática
agora a cómica
(fixando a plateia de frente)
Se pensam que vim aqui revelar-me em público
despir-me em público
estão completamente enganados
(esboça uns passos de dança, pára de repente e
fixa de novo a plateia)
porque nos ocultamos por detrás do que revelamos
e revelamo-nos por detrás do que escondemos
(ensaia novamente uns passos de dança enquanto sorri)
E eu sou apenas uma personagem
(parada de frente quase em posição de sentido)
Somos todos personagens de uma peça qualquer
e a minha nem foi muito má
Fechei a janela e depois?
Fiquei com os livros
talvez me abram outras janelas
E os lápis de cor já estavam gastos
não iam durar muito
E o espelho agora já só me incomodaria
e os heróis, quem no seu perfeito juízo vai escolher heróis
e quem no pleno uso das suas faculdades mentais se lembra de amar para
sempre
Tudo é passageiro
(ensaia novos passos de dança)
E eu sou apenas uma personagem
uma personagem
apenas uma personagem
(A luz apaga-se abruptamente.)
|