Se eu fosse honesta comigo própria não estaria a escrever isto. E se fosse inteiramente honesta, não estaria a ler os meus cadernos. Mas não suporto a ideia de que toda a gente tenha ficado a pensar em "suicídio" quando eu não acredito, nem por sombras, que eu me tivesse matado. Se bem que eu não me importaria absolutamente nada com o que os outros ficassem a pensar sobre a minha "saída de cena". Mas pessoalmente não aceito a ideia. Chegámos a falar sobre suicídio, lembro-me de me ter ouvido dizer, As pessoas vêem o suicídio como uma coisa anormal. Cada um devia poder escolher o fim. Afinal não escolheu a sua entrada em cena e a própria cena pouco ou nada lhe diz respeito, ao menos a saída, o mais airosa possível. Mas eu tenho a certeza que nunca o faria. Conhecendo-me como me conheço, teria o mínimo de consideração por mim. A família nem quis ouvir falar na palavra suicídio. Ficaram chocados com a notícia, alguns iam tendo um colapso, mas não quiseram saber de pormenores. Só eu fiquei com esta curiosidade, esta obsessão. As próprias condições em que tudo aconteceu foram um pouco estranhas. O carro deve ter deslizado até ao fundo da encosta e quem chegou primeiro ao local lembra-se de ter ficado incomodado com a música altíssima que vinha do leitor de cassetes ligado, sons que "feriam os ouvidos", sons como "gritos de pássaros". Pensei logo, Distraí-me a ouvir a música e a olhar a paisagem. E depois as pessoas logo com a ideia de suicídio. Outro pormenor, eu, custa-me dizer o meu corpo, porque isso é o mesmo que dizer que uma pessoa deixa de ser pessoa para ser apenas um corpo, um objecto, mas adiante, eu parecia não ter ficado ferida do acidente, apenas um pequeno golpe na testa nada mais. Os médicos muito lacónicos, o impacto da queda, tudo muito rápido, não tinha sequer sofrido dores nem nada do género. Essas horas pareceram-me séculos. Peguei pois nos meus cadernos. Confesso. Assumo. Eu detestaria que o fizesse. Mas agora não estou em condições de protestar. E como eu era insuportável por vezes. Agora me lembro que era verdadeiramente insuportável quando me mexiam nas coisas. Peguei nos cadernos, contei oito. No primeiro dia só consegui ler duas páginas. Pensei, Se não fossem estes oito cadernos quem haveria de me aturar. Aquele feitio horrível. Já está tudo dito, já está tudo escrito, li no meu caderno. Nem sei porque tenho eu esta necessidade de escrever, de me exprimir. Será a minha necessidade de comunicar? A meu ver, comunicar não era o meu forte. Era um autêntico "bicho do mato", sempre fui assim desde criança. Como me sinto distante da realidade dos outros. Se pensar bem, até de mim me sinto distante. Aqui parei. Senti de repente um enorme apetite. Estas minhas frases bombásticas provocaram-me uma autêntica crise de fome. Nos primeiros dias, quando tudo aconteceu, fiquei sem apetite nenhum. Não dormi nem comi durante três dias. E agora leio duas ou três frases e ponho-me a comer. Peguei no caderno. O que eu procuro talvez me afaste das pessoas, dos valores dominantes. De que ando à procura? Da autenticidade? Coloquei no gravador a cassete que tinha gerado o pânico entre os bombeiros que me tentaram socorrer. É mesmo meu, pregar um susto aos bombeiros. Webern. Gritos, gritos de pássaros, tinham eles dito. Gritos de pássaros, gritos humanos, a mesma coisa. Talvez eu tenha uma alma itinerante encolhida numa vida claustrofóbica. Se continuo assim transformo-me num insecto. Fujo das raízes como da morte. Uma personagem de Tennessee Williams, é como eu me sinto. E o sonho irremediavelmente perdido, aquele do poeta errante, Orfeu, que fala de um pássaro que não tem pés e nunca pode pousar em nada, passa a vida a bater as asas no ar e é por isso que os falcões não o apanham, não o vêem, não o vêem lá em cima no céu azul, perto do sol. Fechei o caderno, desliguei o gravador e só me contentei com um lanche reforçado.
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