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Ednilsom Montanhole

Religião e Música - 2

Religião e Música - 2

A questão da religiosidade é muito trabalhada na música popular brasileira pós-Revolução de 30. Conceitos como "essência", "mensagem", "transcendência" são analisados por muitos compositores: Dorival Caymmi, Ary Barroso, Noel Rosa...

Isso deve-se ao fato de, nos anos 30, haver uma crescente preocupação com a fé e todos os elementos que se ligam com o sagrado. Diz-se que é dessa época que surgiu a expressão "Deus é brasileiro", mas não há provas concretas. Nas cidades, há uma renovação da religião. Por exemplo, é em 1931 que é inaugurado, por Getúlio Vargas, um dos monumentos mais representativos do Brasil: o Cristo Redentor.

Na República Velha, não havia interação cultural: o catolicismo não se misturava com as outras religiões, outras crenças. Principalmente com as elites que viam as crenças africanas ( o candomblé e a umbanda), como sendo exclusivamente de pobres, dos moradores da periferia. Outro dado interessante sobre as crenças africanas nessa época é que eram legalmente proibidas.

Com a Revolução, ocorre uma miscigenação. Cria-se um "catolicismo do jeitinho brasileiro", com fortes influências da cultura do candomblé. Essa integração cultual não só acontece na religião mas também na arte. O samba e a marcha, que antes eram confinados à periferia, conquistam a cidade e todas as classes, "tornando-se um pão-nosso cotidiano de consumo cultural", como observou Antônio Cândido, em A Revolução de 1930 e a Cultura.

Assim, o samba e a religião tornam-se símbolos do Brasil. No samba de Dorival Caymmi, imortalizado pela voz de Carmen Miranda, O que é que a Baiana Tem? (1939) aparecem bem esses dois elementos. Na última estrofe,

Só vai no Bonfim quem tem

O que é que a baiana tem?

Só vai no Bonfim quem tem

O que é que a baiana tem?

Um rosário de ouro

Uma bolota assim

Oi, quem não tem balangandãs

não vai no Bonfim

Oi, não vai no Bonfim

a baiana, representação da mulher brasileira, tem "um rosário" que é um elemento do catolicismo e um "balangandã" que é um amuleto de crença popular. Cria-se uma representação do brasileiro como muito ligado à religião e como integrador de várias culturas. Às interrogações de qual é a identidade brasileira ("o que é que a baiana tem?"), responde-se que o Brasil é a mistura de duas religiões: a africana e a ocidental. Sem essa integração o brasileiro não se aceitará ("não vai no Bonfim").

Na década de 30, Deus e a fé tornam-se tão habituais quanto o futebol ou o samba. As músicas de vários compositores, como Ismael Silva, Lamartine Babo, Almirante e João de Barro, mostram sempre a identificação do brasileiro com elementos religiosos.

Mesmo se várias músicas dessa época podem, à primeira vista, parecer sambinhas sem nenhuma profundidade têm um estudo conceitual muito interessante. Há sempre uma vontade de exprimir uma transcendência do músico, que representa o brasileiro. Em Filosofia – mesmo não fazendo alusão direta à questão da religião –, Noel Rosa trabalha conceitos como o da paixão, da transcendência e do espírito. É importante não se deixar enganar pela forma bem irônica como é escrita. Diz, no fundo, que há várias formas de atingir objetivos: a filosofia, que nesse caso pouco o auxilia, o samba e, também, a paixão nas suas crenças. Essa música terá uma influência muito grande em artistas como Chico Buarque e os Tropicalistas.

A forma como os compositores vêem o samba é quase como uma religião. Não são raros os versos de "A Mangueira é minha religião" ou coisas do gênero. Talvez seja mesmo Noel Rosa, em Feitio de Oração e Feitiço da Vila, o melhor a definir o samba como era na época. Vai além de um ritmo, de uma música de bairro, é algo do coração. É estranho percebermos a importância da música na vida das pessoas do início do século, mas como diz o nome do samba, é quase uma oração. É um verdadeiro absoluto que faz as pessoas evoluírem. O samba é como uma crença, onde todos são amigos e irmãos.

O samba também traz um aspecto diferente na religião – o que quebra definitivamente com as tendências da música popular do final do século XIX – que é a integração corpo e alma. O corpo, o balanceado da mulata ( em Feitiço da Vila, Noel Rosa escreve "Sol, pelo amor de Deus, / não venha agora / que as morenas vão logo embora!") têm que ser preservados pois são, também, um elemento da cultura brasileira e um meio de transcender.

Há, além desse lado mais voltado ao homem em si, uma visão bem satírica de alguns aspectos da religião. Na última estrofe de Não Brinca Não, também de Noel Rosa, interpretado por Almirante, há uma cena de uma moça, Maria, que vai à sacristia fazer cortesia ao padre. O padre, no entanto, não pode "brincar" pois ele também tem que ter suas presas ( "Que até o padre é gavião!"). Isso talvez seja uma sátira às regras religiosas que impedem o relacionamento de padres e mulheres. Essa música é interessante pois o samba ilustra a sociedade como ela é, sem esconder o que o deveria ser. Acham normais.

Assim, é riquíssima a influência da religiosidade na era pós 1930 – o principal problema para interpretá-los é que são impossíveis de achar e, geralmente, mal gravados. Os sambistas vêem as crenças e as religiões como elementos típicos do brasileiro. Há todo um processo de procura e entendimento do que é brasileiro. Conclui-se que é um integrador, de vários povos, culturas e religiões.

Esse tipo de música influenciará, mais tarde e muito, artistas como Chico Buarque e os tropicalistas.

Trabalho de João Alexandre Peschanski

Aluno de Jornalismo na PUC-SP

e-mail: naircf@uol.com.br