O regime de restrição de direitos dos militares contido no artigo 31.º da Lei de Defesa Nacional foi aprovado em 1982, vigorando, assim, há perto de 15 anos. O decurso do tempo tornou esse artigo 31.º definitivamente desactualizado, carecendo de reformulações urgentes.
Na verdade, a Lei de Defesa Nacional foi aprovada em 1982, logo a seguir à primeira revisão constitucional, num contexto político marcado, no plano das forças armadas, pela extinção do Conselho da Revolução. O regime de restrição de direitos dos militares foi, portanto, influenciado por uma conjuntura muito complexa e, particularmente, adversa a um reconhecimento aberto dos direitos fundamentais dos membros das forças armadas. Foi assim que os direitos de associação, expressão, reunião, manifestação, petição colectiva e capacidade eleitoral passiva sofreram restrições, que vão muito além dos limites constitucionais da necessidade, adequação e proporcionalidade. Por exemplo, o direito de petição colectiva está, pura e simplesmente, proibido; o direito de associação profissional é restringido a associações profissionais de natureza deontológica; o direito de expressão sofre restrições tais que praticamente impediriam os militares de se expressarem publicamente, particularmente sobre as questões que lhes dizem respeito.
Este regime legal aparece hoje, 15 anos decorridos, como obsoleto, excessivo e desajustado face à evolução histórica entretanto verificada, não só no plano internacional e nacional como no plano específico das forças armadas portuguesas.
Sucedeu ao artigo 31.º o que sempre sucede às leis excessivas: foram sendo feitas interpretações «tolerantes» para tentar enquadrar uma dinâmica que, na sua prática, não se conforma com as regras da lei.
Mas o exercício de direitos fundamentais não pode estar dependente de conjunturas, nem da maior ou menor «tolerância» de responsáveis políticos. O regime jurídico deve corresponder à evolução entretanto verificada, e deve fixar as «regras do jogo» de forma clara, objectiva e segura.
O PCP propõe, assim, a alteração do artigo 31.º da Lei de Defesa Nacional, num espírito de modernização e abertura. As soluções propostas não pretendem ser soluções definitivas mas, sim, abrir um debate na Assembleia da República, necessário e urgente, tendo em vista a efectiva alteração daquele artigo 31.º num sentido de progresso.
Importa, particularmente, ter em atenção o direito de associação, designadamente o direito de constituição de associações sócio-profissionais. A evolução verificada nos últimos anos nos países da União Europeia foi no sentido do seu progressivo reconhecimento.
Em 1984 o Parlamento Europeu aprovou o relatório PETER, que «convida os Estados-membros a concederem, em tempo de paz, aos membros das forças armadas o direito de criarem, para defesa dos seus interesses sociais, associações profissionais». Em 1988 foi a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa que aprovou o relatório APENES, que «convida todos os Estados membros do Conselho da Europa a concederem, em circunstâncias normais, aos membros profissionais das forças armadas o direito de criarem associações específicas, formadas para protegerem os seus interesses profissionais no quadro das instituições democráticas».
Esta tendência do moderno direito europeu corresponde à crescente afirmação do carácter inalienável dos direitos fundamentais de cidadania. Hoje, na maioria dos países da União Europeia, já existem associações profissionais de militares que cooperam no âmbito da EUROMIL.
O PCP propõe que o artigo 31.º seja alterado nesta parte, por forma a dar pleno assento legal a este tipo de associações. Não se trata de sindicatos com os poderes que a Constituição prevê (embora a questão do sindicalismo militar não seja nenhum tabu). Trata-se de legalizar aquilo que é uma realidade implícita e socialmente reconhecida, que é a existência de associações profissionais representativas de militares.
Também na área dos direitos de expressão, reunião,
manifestação, petição colectiva e quanto à
capacidade eleitoral passiva, o PCP propõe significativas alterações,
conforme decorre do seguinte quadro comparativo do texto actual do artigo
31.º da Lei de Defesa Nacional e do texto proposto pelo PCP.
Assunto | Texto da Lei de Defesa Nacional | Texto do Projecto de Lei do PCP |
Princípio Geral |
n.º 1 -- O exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição colectiva e a capacidade eleitoral passiva dos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e contratados em serviço efectivo será objecto das restrições constantes dos números seguintes. | n.º 1 -- Os militares gozam dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente estabelecidos, mas o exercício dos direitos de associação, expressão, reunião, manifestação e petição colectiva, sofre as restrições constantes dos números seguintes. |
Liberdade de Associação |
n.º 6 -- Os cidadãos referidos no n.º 1 não podem ser filiados em associações de natureza política, partidária ou sindical, nem participar em quaisquer actividades por elas desenvolvidas, com excepção da filiação em associações profissionais com competência deontológica e no âmbito exclusivo dessa competência. | n.º 2 -- Os militares gozam da liberdade de associação, nos termos gerais, não podendo contudo ser filiados em partidos e associações políticas constituídas nos termos da Lei dos Partidos Políticos (Decreto-Lei n.º 595/74), nem em associações sindicais constituídas nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 215-B/75. |
Liberdade de expressão |
n.º 2 -- Os cidadãos referidos
no n.º 1 não podem fazer declarações públicas
de carácter político ou quaisquer outras que ponham em risco
a coesão e a disciplina das Forças Armadas ou desrespeitem
o dever de isenção política e apartidarismo dos seus
elementos.
n.º 3 -- Os cidadãos referidos no n.º 1 não podem, sem autorização superior, fazer declarações públicas que abordem assuntos respeitantes às Forças Armadas, excepto se se tratar de artigos de natureza exclusivamente técnica inseridos em publicações editadas pelas Forças Armadas e da autoria de militares que desempenhem funções permanentes na respectiva direcção ou redacção. |
n.º 3 -- Os militares gozam de liberdade de expressão e informação, nos termos gerais, não podendo contudo fazer declarações públicas que violem o dever de apartidarismo ou que forneçam dados classificados que ponham em risco a Defesa Nacional. |
Assunto | Texto da Lei de Defesa Nacional | Texto do Projecto de Lei do PCP |
Direito de Reunião |
n.º 4 -- Os cidadãos referidos no n.º 1 não podem convocar ou participar em qualquer reunião de carácter político, partidário ou sindical, excepto se trajarem civilmente e sem usar da palavra nem fazer parte da mesa ou exercer qualquer outra função. | n.º 4 -- Os militares gozam do direito de reunião, mas não podem convocar ou participar em qualquer reunião de carácter partidário ou sindical, excepto se trajarem civilmente e sem usar da palavra nem fazer parte da mesa ou exercer qualquer outra função. |
Direito de Manifestação |
n.º 5 -- Os cidadãos referidos no n.º 1 não podem convocar ou participar em qualquer manifestação de carácter político, partidário ou sindical. | n.º 5 -- Os militares não podem convocar ou participar em manifestações de carácter partidário ou sindical. |
Petições Colectivas |
n.º 8 -- Os cidadãos referidos no n.º 1 não podem promover ou apresentar petições colectivas dirigidas aos órgãos de soberania ou aos respectivos superiores hierárquicos sobre assuntos de carácter político ou respeitantes às Forças Armadas. | n.º 6-- Os militares podem promover ou apresentar petições colectivas dirigidas aos órgãos de soberania ou aos respectivos superiores hierárquicos, excepto sobre assuntos de carácter político-partidário ou respeitantes à actividade operacional das Forças Armadas. |
Assunto | Texto da Lei de Defesa Nacional | Texto do Projecto de Lei do PCP |
Capacidade Eleitoral |
n.º 9 -- Os cidadãos referidos
no n.º 1 são inelegíveis para a Presidência da
República, para a Assembleia da República, para as Assembleias
Regionais dos Açores e da Madeira, para a Assembleia Legislativa
de Macau e para as assembleias e órgãos executivos das autarquias
locais e das organizações populares de base territorial.
n.º 10 -- Não pode ser recusado, em tempo de paz, o pedido de passagem à reserva apresentado com o fim de possibilitar a candidatura a eleições para qualquer dos cargos referidos no número anterior. |
n.º 7 -- Os militares são elegíveis para os órgãos de soberania e órgãos de poder regional e local electivos, mas, para o efeito têm de pedir a passagem à reserva ou requerer a licença sem vencimento, as quais, em tempo de paz, não podem ser recusadas, iniciando-se a reserva ou a licença com a apresentação da candidatura e terminando, no caso de licença, com a não eleição ou com a cessação do mandato. |
Direitos Laborais |
n.º 11 -- Aos cidadãos mencionados no n.º 1 não são aplicáveis as normas constitucionais referentes aos direitos dos trabalhadores. | n.º 8 -- Aos militares não é reconhecido o direito de greve. |
Actos oficiais e conferências |
n.º 7 -- O disposto nos n.ºs. 4, 5 e 6 deste artigo não é aplicável à participação em cerimónias oficiais, nem em conferências ou debates promovidos por institutos ou associações sem natureza de partido político. | n.º 9 -- As restrições acima referidas não são aplicáveis à participação dos militares em cerimónias oficiais ou em conferências ou debates promovidos por entidades ou associações sem natureza de partido político. |
Serviço
Militar Obrigatório |
n.º 12 -- Os cidadãos que se encontrem a prestar serviço militar obrigatório ficam sujeitos ao dever de isenção política, partidária e sindical. | n.º 10 -- No exercício das suas funções, os cidadãos que se encontram a prestar serviço militar obrigatório estão exclusivamente ao serviço do interesse público, estando sujeitos ao dever de isenção partidária. |
Assim, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais
aplicáveis, os Deputados abaixo assinados apresentam o seguinte
projecto de lei:
Artigo único
O artigo 31.º da Lei de Defesa Nacional (Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro) passa a ter a seguinte redacção:
Artigo 31º
1 - Os militares gozam dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente estabelecidos, mas o exercício dos direitos de associação, expressão, reunião, manifestação e petição colectiva sofre as restrições constantes dos números seguintes.
2 - Os militares gozam da liberdade de associação nos termos gerais, não podendo, contudo, ser filiados em partidos e associações políticas constituídas nos termos da Lei dos Partidos Políticos (Decreto-Lei n.º 595/74), nem em associações sindicais constituídas nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 215-B/75.
3 - Os militares gozam de liberdade de expressão e informação nos termos gerais, não podendo, contudo, fazer declarações públicas que violem o dever de apartidarismo ou que forneçam dados classificados que ponham em risco a defesa nacional.
4 - Os militares gozam do direito de reunião, mas não podem convocar ou participar em qualquer reunião de carácter partidário ou sindical, excepto se trajarem civilmente e sem usar da palavra nem fazer parte da mesa ou exercer qualquer outra função.
5 - Os militares não podem convocar ou participar em manifestações de carácter partidário ou sindical.
6 - Os militares podem promover ou apresentar petições colectivas dirigidas aos órgãos de soberania ou aos respectivos superiores hierárquicos, excepto sobre assuntos de carácter político-partidário ou respeitantes à actividade operacional das forças armadas.
7 - Os militares são elegíveis para os órgãos de soberania e órgãos de poder regional e local electivos, mas, para o efeito, têm de pedir a passagem à reserva ou requerer a licença sem vencimento, as quais, em tempo de paz, não podem ser recusadas, iniciando-se a reserva ou a licença com a apresentação da candidatura e terminando, no caso de licença, com a não eleição ou com a cessação do mandato.
8 - Aos militares não é reconhecido o direito de greve.
9 - As restrições acima referidas não são aplicáveis à participação dos militares em cerimónias oficiais ou em conferências ou debates promovidos por entidades ou associações sem natureza de partido político.
10 - No exercício das suas funções, os cidadãos
que se encontram a prestar serviço militar obrigatório estão
exclusivamente ao serviço do interesse público, estando sujeitos
ao dever de isenção partidária.
Assembleia da República, 9 de Abril de 1997. - Os Deputados do PCP: Octávio Teixeira - João Amaral - Lino de Carvalho - Rodeia Machado - José Calçada - Odete Santos.