Sobre os Racionais MC's
"O diferencial desse grupo de rap já começa na escolha cuidadosa das palavras"
Pela primeira vez na história da música
popular brasileira, temos à nossa disposição uma obra
musical que realmente retrata, de A a Z, as agruras e sofrimentos que todo
jovem pobre de periferia conhece de cor e salteado: a violência policial
temperada com o preconceito racial, o som nervoso dos tiroteios noturnos
entre traficantes, a banalidade do mal presente nos acertos de conta, a
destruição dos jovens pelas drogas, a decadência de
meninas que até ontem brincavam com bonecas e hoje são prostitutas
mirins, a visão de mães angustiadas imaginando o maldito
dia em que correrão para a rua e chorarão em cima de seus
filhos tombados à bala. Toda esta cultura da violência presente
na vida de milhões de brasileiros, todo este interminável
pesadelo que movimentos obtusos visando o desarmamento de civis não
conseguem apreender foram devidamente registrados e transofrmados em produto
artístico pelos talentosos rapazes dos Racionais MC's. Isto é
um fato cultural de certa relevancia, pois ninguém até agora
tinha dedicado tanto tempo e talento para narrar, sem afetação
ou hipocrisia, histórias sem glamour de gente pobre e miserável.
Os Racionais produzem crítica social em forma de rap desde 1988,
mas só agora atingiram a maturidade artística com o contundente
trabalho Sobrevivendo no Inferno. Lançado em dezembro de 1997, este
disco é um excelente retrato do Brasil contemporâneo, pois,
em vez de falar das diminutas ilhas de prosperidade onde os ricos e os
de classe média vivem, ou gastar rimas e acordes incentivando sonhos
impossíveis de amor e dinheiro, trata da difícil vida dos
moradores das enormes regiões periféricas de São Paulo.
Ano após ano, surgem nas malhas urbanas das grandes cidades do Brasil
milhões de hectares ocupados por uma população carente
dos serviços públicos mais básicos. Esse desordenado
crescimento das periferias urbanas já é estudado por vários
especialistas no assunto, que vêem o alarmante fenômeno como
um câncer que ameaça comer as metrópoles do país
pelas bordas. No âmbito musical, os Racionais ainda são os
únicos a quebrar o silêncio e a martelar em nossos ouvidos
as funestas consequências de haver tanta gente marginalizada querendo
obter dinheiro, a qualquer custo, para finalmente ter acesso à moradia,
à educação e aos prazeres que a nossa sociedade de
consumo oferece. Nessa procura equivocada por uma dose aceitável
de felicidade e paz, a frustração é um fator constante,
e funciona como um estopim que faz estourar a violência e aumentar
os índices de criminalidade.
O rap (rhythm and poetry, ritmo e poesia), a forma de expressão
artística preferida pelos jovens das periferias paulistas, é
um gênero musical em que a melodia não é o mais importante,
mas sim as batidas secas e as rimas, que dão o tom das narrativas
a respeito da cultura das ruas (hip hop). Os rappers são uma espécie
de cronistas urbanos que já marcam sua presença no cenário
musical brasileiro há mais de dez anos. Portanto, os Racionais não
foram os primeiros a fazer esse tipo de música por aqui, mas foram
com certeza pioneiros ao tomar como base para o seu trabalho única
e exclusivamente a realidade dos subúrbios e das favelas. E fizeram
isso com tal maestria, que abriram um possível canal de conhecimento
entre duas classes que sempre se odiaram: a dos que possuem e vivem atormentados
pelo medo da perda, e a dos que não possuem e vivem dominados pela
febre da cobiça. Nas músicas dos Racionais, o ódio
de classe e o orgulho racial estão explicitados de uma maneira como
nunca se viu antes em nossa cultura. Esse escancaramento de nossas mazelas
sociais é uma contribuição nada desprezível
para a compreensão da sociedade brasileira contemporânea.
Essa característica do trabalho dos Racionais - a de oferecer um
perfil psicológico e comportamental de parte de nssa população
- tira-os do estrito cenário musical para colocá-los num
campo mais amplo: o do estudo sistemático e interdisciplinar do
fenômeno da violência urbana. Sabe-se, por exemplo, que, muito
antes de um rapaz da favela se encher de coragem e sair para a rua para
cometer seu primeiro crime, já houve em sua cabeça toda uma
re(in)volução mental que lhe vai dar a base emocional necessária
para suportar a pressão psicológica presente em toda situação-limite.
O favelado simplesmente não acorda numa bela manhã, lança
um olhar em direção ao horizonte, e resolve que já
está na hora de radicalizar. É necessária toda uma
preparação espiritual e mental para a criminalidade, muitas
vezes obtida após anos de convívio com um código moral
e ético da bandidagem,, que traz em seu cerne um desprezo pela vida
de todos os bem nascidos e uma revolta contra um sistema social e financeiro
que os trata como escória. Essa fórmula, em que se encontram
em doses iguais o ódio, a frustração e a dor, está
magistralmente descrita nas letras e na música dos Racionais. Ao
mostrar os sonhos, a desesperança e o fim trágico de muitos
rapazes da periferia, esses rappers impedem que esqueçamos o quanto
a existência humana é complexa, sobretudo quando ela está
sob o domínio do medo e da miséria. Em meio a esse clima,
e entre um xingamento e outro, eles aproveitam para mandar mensagens pacíficas
e antidrogas a todos aqueles que ainda nutrem ilusões com relação
ao mundo do crime.
Entretanto, nas histórias narradas pelos Racionais não tem
santo, e tampouco se encontra esse tipo mítico que os adeptos da
pena de morte tanto gostam de evocar, que é a figura do bandido
insensível e sem alma. O universo de Sobrevivendo no Inferno é
povoado por prostitutas, policiais corruptos, viciados em crack, crentes,
traficantes e presidiários, e todos eles se debatem num jogo de
cartas marcadas, e vão pensando e sentindo a vida da maneira que
dá. A análise livre de maniqueísmo que os Racionais
fazem dessa fauna é talvez a melhor síntese possível
do estado de espírito que domina os principais agentes de nossa
violência urbana. O Núcleo de Estudos de Violência,
da USP, por exemplo, deveria, se já não o fez, incluir esse
CD em seu acervo, pois trata-se de um documento sonoro referente a um estado
de coisas que dificilmente alguém conseguiria compreender senão
pelo duro caminho da experiência pessoal. E como só um louco
procuraria viver essas experiências por vontade própria, a
audição desse disco é uma excelente oportunidade para
quem quiser exercitar sua sensibilidade com relação a algo
tão preocupante como a violência gerada pelas desigualdades
sociais.
É muito provável que, daqui a pouco, gente totalmente alheia
ao mundo cão da periferia e das favelas comece a consumir o trabalho
dos Racionais como algo exótico, como o "som diferente daquele
grupo que fala palavrão", e daí, com esse mórbido
prazer em ouvir baladas que tratam de sofrimento e morte, faça os
Racionais mais famosos do que já são e os torne realmente
ricos. Mas, por enquanto, o interessante no sucesso deles (200.000 cópias
vendidas do último CD nas primeiras quatro semanas, videoclipe na
MTV, convites de grandes gravadores, primeiras páginas dos principais
cadernos culturais de São Paulo, etc) é que cresceram como
rappers a partir do apoio de jovens pobres que se identificam com as letras
e a postura do grupo. Isso mostra que uma parcela de nossa juventude sente
necessidade de músicas que falem de um mundo real e não de
uma terra de sonhos. Esse fato faz uma grande diferença, pois demonstra
coragem por parte dessas pessoas, e talvez até pragmatismo. Naturalmente,
é sempre possível argumentar que sonhar é preciso.
Porém, quando se vive no meio da sujeira e da fome, é necessário
tomar muito cuidado com o que se sonha... De qualquer modo, a grande aceitação
entre esses jovens de um discurso direto e pesado pode dar pistas para
as organizações não-governamentais e talvez para o
governo, a respeito da linguagem e do discurso mais adequados a serem adotados
sempre que tiverem algo a dizer para eles.
A vida na periferia, por ser muito dura, não comporta eufemismos.
Por isso, o diferencial desse grupo de rap já começa na escolha
cuidadosa das palavras. A crueza do vocabulário, evidenciado no
uso pertinente e criativo de gírias e palavrões, compõe
uma linguagem de rua que é a própria linguagem da sobrevivência.
Curtos e grossos, porém articulados, os Racionais criaram um produto
cultural inédito ao descrever a vida sem futuro dos bandidods e
as aspirações impossíveis dos pobres. O crítico
literário Wilson Martins, ao analisar a obra do escritor Rubem Fonseca,
afirmou que este criou um gênero novo, o conto de violência
urbana contemporânea, em que reproduz com grande fidelidade o idioma
dos fora-da-lei do Rio de Janeiro. Ora, um crítico de música
atento poderia transpor esse comentário literário para o
plano musical sem maiores problemas, apenas trocando Rio por São
Paulo, e o nome do escritor pelo dos Racionais. Com esses rappers, finalmente
o gênero musical gangsta rap aportou decentemente por aqui. E é
um gangsta rap que transpira uma autenticidade capaz de matar de inveja
a rapaziada do Public Enemy, que se entendessem português teriam
uma linha direta de contato com o mundo periférico das grandes cidades
brasileiras: esses enormes bolsões de pobreza esquecidos poelo Estado
e por Deus (mas não pelas igrejas evangélicas, e nem pelos
traficantes...).
Ao fazer uma perfeita tradução de como deve ser a vida no
inferno, os Racionais demonstraram uma autenticidade tocante. O mesmo tipo
de autenticidade que se vê no rapaz da periferia que veste a sua
jaqueta de cetim, põe o seu boné, sai de casa esperto com
a polícia, pega a sua pretinha, e vai para o salão se divertir
ouvindo e vendo o show de Manno Brown, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay. Pois
talvez seja mais saudável para esse rapaz e sua menina um encontro
com a racionalidade presente em letras que dizem que as drogas e as armas
são o começo de um mergulho num poço sem fundo, do
que ouvir roquinhos irresponsáveis que incentivam o uso da maconha,
ou ir no embalo de lamentáveis refrões do tipo "ela
faz a cobra subir".
Para o jovem que se esforça para visualizar alguma luz no túnel
da sua vida, um rap perturbador que não esconde a ausência
de perspectivas, mas prega a paz e um comportamento saudável, visando
forças para enfrentar um futuro nada atrativo, pode ser uma influência
benéfica. E quem se deixar levar pelo preconceito pode cometer o
equívoco de ver caretice e mau gosto musical nas mensagens pacíficas
e cara limpa dos Racionais, correndo, assim, o risco de continuar achando
Fernando Gabeira e Planet Hemp o máximo em termos de liberdade.
Neste pavoroso cenário musical em que as classes populares confundem
a pornografia sonora de grupos como É o Tchan com canções
de amor, e músicos brasileiros consagrados se debatem em repetições,
o aparecimento dos Racionais é um verdadeiro acontecimento, e mais
uma opção de consciência e diversão.
Marco Frenette, jornalista
Revista
Caros Amigos
Ano 1 - número 12 - março 1998
Editora Casa Amarela
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