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Racionais retratam a vida na periferia em novo disco
ISRAEL DO VALE
Especial para o Estado
Há quatro anos, as músicas Fim de Semana
no Parque e Homem na Estrada escancararam para o País
um fenômeno subterrâneo que, pelo menos três anos antes,
já mobilizava centenas de pessoas por show e vendia dezenas de milhares
de discos. Nem por isso, os agentes desse fenômeno, os Racionais
MC's - o mais contundente e criativo grupo de rap do País -, se
abalaram com o assédio oco produzido pela superexposição
na mídia.
O sucesso do CD Raio-X Brasil, que teria vendido cerca de
300 mil cópias, fez, antes, com que reafirmassem com mais convicção
cada um de seus princípios. Com ele, cresceram e apareceram, sim.
Mas, como mostra seu novo disco, Sobrevivendo no Inferno,
eles continuam os mesmos - assim como a desigualdade social e a criminalidade,
que ainda mantêm o triste moto- perpétuo dos idos em que a
banda foi formada, nove anos atrás, quando serviram de mote para
a letra de Pânico na Zona Sul, faixa que os apresentou ao
mundo na coletânea Consciência Black Vol. 1,
em 1990.
A partir daí, os Racionais lançaram, além de Raio-X
Brasil (de 1993), os discos Holocausto Urbano (1991),
Escolha Seu Caminho (12 polegadas com três faixas, de 1992)
e Racionais MC's (compilação com as "mais-mais" da
banda, de 1994).
Inteligência rara - Primeiro rebento depois de um longo e
tenebroso inferno - que incluiu desentendimentos com a polícia e
com sua antiga gravadora, a Zimbabwe, além de uma falsa polêmica
com o Pavilhão 9 -, Sobrevivendo... é a prova de que
cabe muito mais inteligência no rap do que mostram os "234-5meia-tigelas"
de plantão.
Com 100 mil cópias - quase esgotadas em uma semana - de tiragem
inicial, Sobrevivendo no Inferno é um retrato cruel
do labirinto incandescente que virou a vida na periferia, onde cada um
se segura como pode. Talvez por isso a religião seja um elemento
tão forte nas letras do CD.
"Em todos os discos dos Racionais a gente fala das armas, das drogas,
das tretas, da bandidagem", explica Mano Brown, vocalista e principal letrista
do grupo, ao lado de Edy Rock. "O lado religioso entra como comparação,
quando as coisas se cruzam: quando a arma cruza com a palavra da Bíblia,
quando usar uma Bíblia vale mais do que usar uma arma e quando
a Bíblia pode te ajudar pouco na situação",
diz.
Anunciado como um disco mais pesado, Sobrevivendo no Inferno é,
musicalmente, até que bem leve. "O peso está é nas
letras", desvenda o DJ KL Jay, que completa o grupo com Ice Blue. "Ele
é mais pesado no sentimento", argumenta Mano Brown. "Quando você
fala de coisas que estão muito longe de você, tipo os menores
de rua, a miséria, você generaliza muito", teoriza. "Mas quando
você fala daquele mano, daquela casa, o dia que ele morreu, aí
mexe mais, fica mais pesado."
Com samplers da soul music de Isaac Hayes, Isley Brothers e Tom Brown
ou do funk de grupos como Ohio Players, M to Me e Bar Kays, o quarto disco
da banda traz, já na abertura, uma reverência que funciona
mais como aviso. Uma sensacional releitura de Jorge da Capadócia,
do saudoso ex-Jorge Ben, abre o disco como um rito de passagem para a dignidade.
É um culto ao corpo fechado, contra as dificuldades dos últimos
anos. "Ele fala de Ogum, de São Jorge, um santo guerreiro que abre
caminhos", conta Mano Brown. "A gente precisava disso", justifica, sem
querer entrar em detalhes.
Independência - Uma possível leitura para o desabafo
está na virada por que passa a banda, depois de dar o grito de independência
para sua antiga gravadora, a Zimbabwe, que detinha os direitos do nome
do grupo e dos próprios codinomes de seus integrantes - o que colaborou
para o longo intervalo entre o terceiro e o quarto disco. "Fizemos um acordo
com eles e agora está tudo bem", festeja Edy Rock.
Pelas negociações, a Zimbabwe limita-se a distribuir esse
disco da banda, via sua distribuidora, a Zambia. A partir do próximo,
os Racionais assumem o controle total sobre tudo que produzir. De cara,
as mudanças já permitiram que os Racionais inaugurassem o
próprio selo, Cosa Nostra, pelo qual planejam lançar grupos
a partir do ano que vem. "Mas só vamos pensar nisso depois que as
coisas começarem a andar sozinhas", avisa KL Jay, que, a partir
de agora, acumula as funções de, digamos, poderoso-chefão
do selo. "Sou o único mais organizado na banda", explica. "Antes
de tudo, temos de vender o disco novo e fazer nossos shows."
Primeira conspiração: graças à progressiva
extinção do vinil no mercado brasileiro, a turnê de
lançamento de Sobrevivendo no Inferno só começa,
com toda munição, no início ano que vem. O motivo
é o atraso na entrega do disco com a base instrumental usada nas
apresentações ao vivo. "Hoje só existem três
fábricas de vinil no Brasil e duas são piratas", conta KL
Jay. A única legal é também a melhor. E anda atulhada
por pedidos de discos evangélicos. "Estão querendo acabar
com os DJs", queixa- se KL Jay. "Esse negócio de fazer scratch em
CD não dá."
Até o fim do ano, os sempre concorridos shows dos Racionais - que
hoje chegam a colocar 16 "manos" ao mesmo tempo sobre o palco, como fizeram
no último fim de semana no Esporte Clube Vila Maria - usam como
base o repertório dos discos anteriores.
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