Revolução
racional
Grupo
de rap que fala do cotidiano do negro na periferia de São Paulo,
vende quase meio milhão de cópias com CD independente
SILVIO ESSINGER
``Deus fez o mar, as árvores, as crianças,
o amor. O homem lhe deu a favela, o crack, a trairagem, as armas, as bebidas,
as p... Eu... Eu tenho a Bíblia velha, a pistola automática,
o sentimento de revolta. Eu tô tentando sobreviver no inferno.''
Isto é Genesis, vinheta falada de "Sobrevivendo no
inferno", mais recente CD dos rappers paulistanos Racionais MCs. Versando
há dez anos sobre o cotidiano do negro da periferia paulistana _
recheado de histórias de crime, droga e violência policial,
Mano Brown, KL Jay, Ice Blue e Edy Rock acabam de conseguir uma façanha
inédita. Sem divulgação, sem distribuição
de grande gravadora, sem uma vez sequer terem aparecido na Rede Globo,
eles estão à beira de completar meio milhão de cópias
vendidas de Sobrevivendo.
Na sua caminhada, contaram apenas com a contundência do discurso
e com a fidelidade do público, todo ele conquistado nas periferias
das grandes capitais brasileiras. Em retribuição aos fãs
cariocas, os Racionais se apresentam dia 4 no Imperator, em grande festa.
Um dia antes, porém, dão uma parada no Bangu I para visitar
um de seus maiores admiradores: José Carlos Encina, o Escadinha.
Seguidores de um tipo de rap americano chamado de gangsta, os Racionais
ficaram conhecidos do grande público brasileiro a partir de 1993,
com a canção Fim de semana no parque, que chegou a tocar
em algumas FMs mais bem comportadas. Esta e outras faixas tão pesadas
quanto. como "Mano na porta do bar" e "Homem na estrada"
foram reunidas em um CD, Racionais MCs, distribuído por uma grande
gravadora. Este compilava as faixas de seus três discos lançados
até então, Holocausto urbano (90), Escolha seu caminho (92)
e Raio X Brasil (93). Entre as músicas do CD, estão "Pânico
na Zona Sul" e "Tempos difíceis", as primeiras que
escreveram, e que entraram na coletânea Consciência black,
de 1988.
Os Racionais são de uma segunda geração do rap paulistano,
depois de pioneiros como Thaíde e DJ Hum, MC Jack, Código
13. ``Vimos Jack cantar e achamos legal'', conta Ice Blue, que até
então não conhecia rap e tinha um grupo de samba com os primos.
``Estamos próximos do samba. Ele ainda é música da
favela, apesar de ter se elitizado'', diz.
O começo não foi fácil _ ``Ninguém estava interessado
em gravar música que desse um toque'', conta o rapper , mas eles
seguiram em frente. Shows aqui e ali (alguns na FEBEM, já que Mano
Brown era presidente da Associação de Meninos de Rua do ABC)
e eles chegaram em 1991 a tocar em São Paulo com a banda americana
Public Enemy. A hora da virada, porém, se deu quando os Racionais
resolveram fundar o seu próprio selo, o Cosa Nostra (cujo símbolo
é a figura de São Jorge matando o dragão). O primeiro
fruto, Sobrevivendo no inferno, foi lançado em novembro do ano passado,
com a decisão de não se fazer divulgação de
tipo algum. No boca-a-boca, o disco vendeu 150 mil cópias só
na primeira semana. ``A gente está mostrando a todo mundo que é
só acreditar. O homem não pode esquecer o sonho. Passamos
por várias dificuldades, hoje estamos com o selo, cuidando do nosso
dinheiro. Mas ainda há barreiras. É mais fácil andar
do lado da mídia'', diz Ice Blue. Depois do lançamento deste
disco, os Racionais dizem ter recebido (e imediatamente recusado) convites
para se apresentar no Faustão e no Planeta Xuxa. Eles insistem também
em não fazer shows em casas burguesas - o compromisso é com
as suas comunidades.
A única concessão, se é que se pode dizer, foi a gravação
de um videoclipe para uma das faixas mais fortes de "Sobrevivendo",
"Diário de um detento", narrativa fictícia com
data de 1º de outubro de 1992 - um dia antes do massacre no presídio
do Carandiru, em São Paulo. Mano Brown vestiu o uniforme bege dos
detentos, foi à penitenciária e fez sua participação
no vídeo que tem exibição restrita à MTV. ``A
MTV é um lugar bom, tem que ser feito pelos Racionais. Eles ainda
têm um programa de rap, apesar do horário estranho'', explica
Ice Blue. Aliás, nesta terça-feira, às 21h, a emissora
apresenta um show da banda no Ginásio do Corínthians, gravado
em dezembro passado.
Ao contrário do gangsta americano, os Racionais são contra
o consumo de drogas. Mas não têm pudores ao falar da opção
pelo crime. ``Não somos contra porque sabemos o que levou o cara
a fazer aquilo. A gente não apóia, mas também não
pode criticar. Já estive próximo de tomar um tiro, de ir
para a cadeia. Sou um sobrevivente, graças a Deus'', diz Ice. O
rap americano, segundo ele, tem uma realidade totalmente diferente daquela
do brasileiro: ``Os rappers de lá são caras que passaram
pelo crime também, mas há muito dinheiro e mais condições.
Eles mesmos não sabem explicar o que acontece. Dizem até
que o Tupac (Shakur) forjou seu assassinato. São viagens do mundo
americano.''
A chegada dos Racionais no Rio começou no ano passado, pelos bairros
da periferia. Apenas com cartazes, chegaram a reunir quatro mil pessoas
no Imperator, no Méier. ``Só quem conhecia a banda era quem
tinha comprado o disco em São Paulo'', diz Celso Athayde, carioca
de Madureira, encarregado do Projeto Racionais no Rio. Ele organizava o
projeto Charme de Rua no bairro quando foi contactado pela banda. ``Não
queria trabalhar com eles, achava-os radicais. Mas acabei descobrindo que
não eram'', diz.
Na cidade, um desafio permanece para os Racionais: ultrapassar a barreira
funkeira. ``O funk é uma música que alegra o povo, que fala
de uma maneira mais feliz. A gente dá mais paulada'', conta Ice
Blue. A postura da banda, porém, não é de enfrentamento:
``Quem gosta de rap vai gostar de funk, como gosta de samba. Tudo vai ser
um público só. Vamos juntar numa festa o Marcinho & Goró,
o Zeca Pagodinho e os Racionais. O morro gosta disso.'' Sobre a visita
a Escadinha (a banda pretende fazer um disco com rappers musicando as letras
do ex-traficante), Ice tem uma explicação simples: ``Ninguém
melhor do que ele para falar se o crime é bom ou ruim. Ele conhece,
não é burro e gosta da banda.''
Com um prêmio de disco do ano dado pelos críticos reunidos
pela revista Showbizz, os Racionais acreditam que os toques ainda não
foram suficientemente dados - principalmente para os negros. ``O povo preto
tem é que deixar de ser coitado. Ele não é coitado!
Setenta por cento da população brasileira é negra.
Nos EUA, os negros são 16% e eles mandam por lá. Aqui o povo
se acostumou ao cotidiano violento, de viver na favela sem água
e sem luz'', ataca Ice Blue.
O plano dos Racionais é seguir fazendo um grande show de lançamento
do disco em cada estado _ depois do Imperator, estão marcadas datas
no Gigantinho (Porto Alegre), Mineirinho (Belo Horizonte). Em cada parada,
eles buscam fortalecer a cena rap local. Exemplo: o rapper carioca MV Bill
é um dos que vai gravar disco pela Cosa Nostra. ``Um dia a gente
quer fazer como num Rock in Rio - grandes festivais de rap com banda de
todo lado do Brasil, várias festas com estrutura'', sonha Ice Blue.
Publicado em.: 30/03/1998..........Fonte..: JORNAL DO
BRASIL
Editoria.....: Caderno B...........Legenda:
Página.......: 23..................Edição.: 1ª
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