Som que perturba

Racionais MC's lançam Sobrevivendo
no Inferno,
CD que agrada e inquieta

Celso Masson

Racionais: Ben Jor,
Bíblia e cadeia em
tom autobiográfico
Klaus Miteldorf/Divulgação  

O CD de música brasileira mais perturbador dos últimos tempos acaba de ser lançado por quatro jovens negros, moradores da periferia paulistana. Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC's, não surpreende pelo tom raivoso, uma patente do rap, mas pelo apuro musical. Sem esquemas de promoção, o disco passou das 100000 cópias em apenas duas semanas. Enquanto no Brasil a maioria dos MC's faz a linha romântica de Claudinho & Buchecha, os Racionais entendem que o verdadeiro rap serve para defender idéias de preferência radicais. Um rap bem-feito prende a atenção, ainda que o ouvinte discorde da letra. É assim com o Public Enemy, que prega a segregação racial, ou com Wyclef Jean, haitiano refugiado nos Estados Unidos que ataca o preconceito contra imigrantes no país que o acolheu. Pode-se discordar do ideário martelado nas músicas dos Racionais MC's até por seu aspecto suicida, já que, ao protestar contra a violência policial de que são vítimas, insinuam uma reação armada. Mas é inegável que o grupo sabe defender suas crenças com talento e eficácia.

O rap costuma aproveitar ruídos para compor um panorama sugestivo. Esse recurso é empregado com maestria pelos Racionais em músicas como Rapaz Comum, que reproduz um acerto de contas: a TV sintoniza um jogo de futebol, a campainha toca, ouvem-se vários tiros e um carro arranca em disparada. "Alguém chame a ambulância", grita um dos rappers do grupo, enquanto outro relata a agonia de mais um jovem assassinado. Cheias de chavões, como "a lei da selva é assim" ou "ninguém é mais que ninguém", as longas letras têm força porque são realistas, cruas. Têm retórica mas é a própria retórica da periferia. A narração, em primeira pessoa, dá um ar de autobiografia a cada música. Em Diário de um Detento é dito: Aqui estou mais um dia/ Sob o olhar sanguinário do vigia/ Você não sabe como é caminhar/ Com a cabeça na mira de uma HK/ Metralhadora alemã ou de Israel/ Estraçalha ladrão que nem papel. A claustrofobia da letra é sublinhada por uma batida funk que lembra as trilhas sonoras de filmes policiais feitos para a TV nos anos 70. Essa justaposição provoca um efeito desconcertante.

Arranjos Ouvir os Racionais equivale a um mergulho num mundo povoado por bandidos, policiais violentos, traficantes, pregadores evangélicos, prostitutas e outros seres que habitam a periferia das grandes cidades brasileiras. Sua maneira peculiar de ver esse mundo vai na contramão dos modismos da música brasileira atual. Seguindo a trilha mais lúcida que vem dos Estados Unidos, os Racionais são contra as drogas e vêem no tráfico o maior mal dos subúrbios pobres do país numa época em que a liberação da maconha passou a ser a única causa que uma parcela jovem da música brasileira consegue enxergar. Para além das idéias que expõe, o melhor do disco é seu bom gosto musical. A única faixa não assinada pelo grupo, Jorge da Capadócia, clássico de Jorge Ben Jor, é cantada sobre a belíssima base de Glory Box, do grupo inglês Portishead (N.W.: "Ike's Rap", de Isaac Hayes). O arranjo reduz a canção ao que ela tem de essencial e a ilumina pelo contato com uma realidade diferente, mostrando que os Racionais fazem o melhor que se pode esperar de uma banda de rap combinar sons de universos díspares chegando a resultados surpreendentes.




Copyright © 1997, Abril S.A.

 

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