Uma análise teológica de Alice no País das Maravilhas

Por Daniel John Clark

Aluno do Segundo Ano do STBC

1.0 Introdução
2.0 Dados Biográficos
3.0 Conceitos Filosóficos Abordados por Carroll em Alice
4.0 O Conceito de "Nonsense" de Lewis Carroll
5.0 O Comportamento de Alice como metáfora do dilemma do Seminarista
6.0 O Discurso de Paulo no Areópago em contraste com Alice
7.0 Conclusão
8.0 Bibliografia

1.0 Introdução

 

Muitos conhecem a história de Alice no País das Maravilhas apenas nas versões simplificadas para crianças ou no filme de Walt Disney . Porém nesse trabalho nós nos basaremos no "Annotaded Alice" comentada por Martin Gardner e que contém a versão original das duas histórias

sobre Alice : "Alice no País das Maravilhas" e "Alice através do Espelho."

 

Iremos concentrar nas várias filosofias apresentadas de maneira cômica nas duas histórias e na sua relevância para estudantes de teologia , concluindo como uma análise do discurso de Paulo no "Aerópago" de Atenas como um paradigma do confronto cristão com a filosofia secular e pagã .

 

Esperamos que esse trabalho possa mostrar um pouco mais da grande profundidade dessa obra prima da literatura inglesa .

 

 

2.0 Dados Biográficos

"Eu vi um homem muito velho , sentado no portão ."

 

Lewis Carroll foi o pseudônimo adotado pelo Reverendo Charles Lutwidge Dobson , nascido em 1832 na cidade de Daresbury , em Cheshire , Inglaterra . A sua família tinha 11 filhos sendo quatro homens e sete mulheres.Nesse ambiente predominantemente feminino Carroll cresceu para ser um jovem sensível , religioso e tímido .

Carroll formou-se em Matemática na Christ Church College em Oxford aonde ele viria a ser palestrante . Aos 29 anos ele foi ordenado como diácono da Igreja Anglicana mais nunca foi ordenado sacerdote .Além das suas duas obras primas a respeito de Alice Carroll escreveu um poema popular "Sylvie e Bruno" e outras obras de menor sucesso .

Um homem solitário , sem nunca ter se casado , a vida particular de Carroll era destacada pela sua excêntrica amizade com crianças , especialmente meninas . A uma delas , Alice Liddell , Carroll dedicou as duas histórias que serão analisadas nessa monografia .

Sempre tendo uma vida particular discreta Carroll veio a falecer em 1898 .

 

 

2.1 Resumo das Duas Histórias

 

"Dessa maneira nasceu o conto do país das maravilhas , vagarosamente uma a uma , os seus episódios foram criados , e agora o conto está pronto ."

 

2.1.1 Alice no País das Maravilhas

 

Nessa história Alice decide seguir um coelho branco falador que estava olhando para o seu relógio através de um buraco e cai numa terra estranha cheio de personagens malucos e confusos . Depois de percorrer essa terra Alice volta à normalidade e descobre que estava sonhando . Essa história foi contada por Carroll para Alice e sua irmã durante um passeio e destaca-se por sua extrema espontaniedade .

 

2.1.2 Alice através do Espelho

 

Desta vez Alice atravessa o espelho e entra numa terra estruturada como um jogo de xadrez a qual ela precisa atravessar para tornar-se uma rainha . Essa história não tem a mesma espontaniedade da anterior mas em compensação mostra um preparo melhor da parte de Carroll sendo mais atraente para leitores adultos . Essa história nos interressará mais pois muitos dos personagens que ela encontra representam filosofias diferentes existentes na época de Carroll e os quais são relevantes para nós aspirantes a teólogos . Novamente no fim da história Alice descobre que estava apenas sonhando .

 

2.3 A Razão de uma Monografia sobre Alice

 

"E nós somos apenas crianças mais velhas , querida , chateados ao descobrir que é hora de dormir."

 

Nesse momento o leitor mais atento , e mais crítico , deve estar se indagando , porque fazer uma monografia num curso de teologia , sobre um livro feito para crianças . Como justificativa apresento as seguintes razões :

 

  1. O livro não é escrito apenas para crianças e têm atraído cada vez mais adultos , sendo um dos livros mais citados em palestras e em discursos .
  2. O livro explora brilhantemente e de maneira cômica e accessível , profundas questões filosóficas .
  3. Creio que como seminaristas nós muitas vezes somos como Alice , nos achamos ingenuamente e inocentemente no meio de uma terra estranha , cheio de filosofias e idéias estranhas e muitos personagens ( Sartre , Nietzsche , Bultmann , Aitzer , Hamilton) que nos parecem malucos . Infelizmente nós não podemos , como Alice , simplesmente acordar e descubrir que tudo não passou de um sonho .
  4. Esse livro já tem sido submetido a várias análise e interpretações : psicanalíticas , linguísticas e filosóficas e creio que uma análise teológica seria um acréscimo interessante nesse processo .
  5. Esse livro têm sido uma das grandes influências na estruturação ( ou des-estruturação ! ) da minha maneira de pensar e é o meu livro predileto da literatura inglesa .

 

 

"Quem nesse mundo eu sou? Ah ! Esse é o grande enigma ."

 

3.0 Conceitos Filosóficos Abordados por Carroll em Alice

 

Nessa seção iremos nos juntar com Alice num passeio pelo País das Maravilhas e A Terra do Espelho e encontrar várias formas diferentes de pensar .

 

3.1 Uma Conversa com um Lagarto

 

Uma das características da primeira história são as constantes alterações no tamanho da Alice . Por isso quando o Lagarto a pergunta : "Quem é você ?" Alice responde :

 

" Eu não sei , Senhor –nesse momento- pelo menos eu sabia quem eu era quando acordei hoje de manhã , mas eu creio que eu devo ter mudado diversas vezes desde então."

 

Essa dúvida que Alice tem reflete o espírito contemporâneo devido ao ataque pós-modernista ao eu cartesiano que desde Descartes caracteriza o pensamento moderno . A nossa ciência moderna está baseada no eu consciente e racional que existe a parte do corpo e desejos e que percebe o mundo ao seu redor como sendo objeto . O ser humano ideal do iluminismo é o cientista racional que consegue evitar que suas emoções e desejos irracionais interferem na sua busca do conhecimento e que portanto pode chegar à única e objetiva verdade . Todavia atualmente este eu cartesiano está sendo substituído pelo conceito de Heidegger de :

 

" seres … no mundo emaranhados em redes sociais ."

 

Dessa maneira o eu pós-moderno encontra se fragmentado e dissolvido no seu contexto social e cultural , não existindo mais a separação entre o sujeito e objeto ou entre o racional e irracional . Consequentemente ninguém pode ter certeza se é a mesma pessoa que acordou de manhã .

 

3.2 O Gato de Cheshire e a Filosofia do Absurdo

 

Mais adiante Alice encontra-se com um gato e ao perguntar-lhe que tipo de pessoas habitavam na sua terra ela escuta a seguinte resposta :

 

"todos somos malucos aqui . Eu sou maluco , você é maluca ."

 

Portanto além de habitarmos num mundo aonde o eu encontra-se dissolvido e fragmentado , esse é um mundo aonde todos são malucos . Na verdade um detalhe é consequência do outro , se não existe um eu consciente para ordenar o mundo e nossa compreensão dela , tudo não passa de um caos , do absurdo .

Essa visão do gato de Cheshire reflete a posição do existentialista que segundo David Cook :

 

"crê que não há significado em nada , ou em tudo colocado junto . O mundo é absurdo e sem sentido . Ser humano é escolher face ao absurdo desse mundo."

 

Essa escolha perante o absurdo é denominado pelos existencialistas como o processo de "autentificação" mediante a qual a pessoa afirma a sua humanidade num mundo definido por Sartre como sendo um mundo na qual é impossível encontrar "valores" quaisquer .

Todavia , conforme critica o filósofo cristão Francis Schaeffer a escolha que nos torna humanos em si é vazia pois o seu conteúdo não importa . Schaeffer cita como exemplo o próprio Jean-Paul Sartre que afirmava que ao observamos uma velhinha atravessar a rua não havia diferença entre ajudar-lá ou atropelá-la pois em ambos os casos estávamos escolhendo , sendo humanos .

Na teologia um exemplo de tal posição é encontrada em Rudolf Bultmann . Levado por sua exegese a duvidar do valor histórico das escrituras e interpretar-lás como sendo míticas Bultmann afirma que Deus não está mais presente na história mas na experiência subjetiva do homem histórico . Dessa maneira a fé destaca-se por trazer até nós subjetivamentee uma nova possibilidade de existência .Todavia como crítica Etienne Higuet:

" Bultmann substitui a questão da responsabilidade por um mundo de justiça no seio de uma história social e política pela questão de uma existência em acordo consigo mesma."

Como no existencialismo de Sarte o conteúdo da experiência existencial perde o seu valor e o ser humano apenas se autentifica num mundo na qual ele não pode transcender o seu individualismo .

Como teólogos cristãos não podemos cair na armadilha do existencialismo pois compete a nós trazer significado e mostrar o próposito divino nesse mundo criado por Deus .

 

3.3 A vida como um jogo de Xadrez

 

 

Na segunda história ao olhar sobre a terra Alice percebe que ela tem o formato de um jogo de xadrez . Ela pergunta à rainha vermelha se ela pode participar e escuta a seguinte resposta:

 

"Você pode ser o peão da Rainha Branca já que a Lily é jovem demais para brincar , e você começará no Segundo Quadrado e quando chegar ao oitavo quadrado você será uma rainha ."

 

Esse tema da vida como um jogo de Xadrez aparece diversas vezes na literatura e na filosofia especialmente em relação ao problema do determinismo . Até que ponto os seres humanos são livres para agir e até que ponto as suas ações são determinadas por forças fora do controle deles ?

Por exemplo em seu livro The Undying Fire H.G Wells começa a sua história com uma conversa entre Deus e o diabo que estão jogando Xadrez :

 

"O Rei do Universo cria o tabulareiro , as peças e as regras , ele faz todos os movimentos … o seu antagonista pode porém introduzir um certo elemento de erro que precisará de correção ."

 

Na teologia essa questão surge na polêmica a respeito da doutrina da predestinação formulada por Agostinho e elaborado por João Calvino . Nessa visão o que determina o destino eterno de Deus é a soberana vontade de Deus .Todos os seres humanos estão destinados ao inferno mas pela sua graça ele escolhe alguns para serem salvos enquanto que os outros são na prática escolhidos para não serem salvos . Efetivamente os seres humanos são portanto reduzidos a peças de xadrez cujo destino é determinado por forças fora do seu controle . Um argumento tradicional usado pelos calvinistas é que o termo "predestinação" aparece na Bíblia mas o termo "livre arbítrio" não .

Naturalmente tal visão nunca foi facilmente aceita por Cristãos e sempre tem havido na teologia a busca de introduzir um espaço para a liberdade do ser humano na definição do seu destino eterno desde o pelagianismo ao arminianismo . Nesse contexto é interessante observar que a Declaração Doutrinária da Convenção Batista Brasileira busca reconciliar uma posição basicamente arminiana com a ênfase calvinista sobre a soberania de Deus .No nosso pensamento batista Deus continua controlando o jogo de xadrez , mas as peças ainda tem liberdade de decidirem o seu destino . Tal visão teria a simpatia de Lewis Carroll pois na sua história Alice age com autonomia .

Biblicamente a posição de Carroll aparece no Livro de Jó . Superficialmente Jó parece ser uma vítima de uma discussão cósmica entre Deus e o diabo a respeito da sua fidelidade .Todavia numa análise mais profunda percebemos Jó agindo com bastante autonomia . É sua a decisão de não blasfemar contra Deus , todavia ele não hesita em negar que seu sofrimento seja consequência de seu pecado e a desafiar o próprio Deus para explicar a sua situação .Na Bíblia os seres humanos não tem controle total sobre as suas vidas , mas também são muito mais do que peças manipuladas em um jogo .

 

3.4 A floresta onde as coisas não tem nome e o problema da correspondência

 

"O que isso se chama ? Eu creio que ele não tem nome , com certeza ele não tem ."

 

No terceiro quadrado do seu jogo de xadrez cósmico Alice entra numa floresta aonde nada , inclusive ela , tem nome algum . Isso levanta o problema da correspondência , o fato de não podermos ter certeza nenhuma de que os nomes que nós damos às coisas correspondem ao que elas são de fato . Segundo os filósofos pós-modernos :

 

"Simplesmente não casamos partes da linguagem com partes do mundo , tampouco uma determinada linguagem fornece um "mapa" preciso do mundo. As linguagens são convenções sociais que mapeiam o mundo de diversas maneiras , dependendo do contexto em que estamos falando."

 

Portanto as nossas palavras não representam um mundo objetivo e sim criam um mundo subjetivo socialmente relativo . Por exemplo na física isso significa que não podemos teer certeza que a palavra "àtomo" representa e seja correspondente a qualquer coisa .Não existe um mundo objetivo mas apenas o mundo da linguagem , criado mediante um jogo linguístico entre quem fala e quem ouve .

Todavia tal cosmovisão destroí qualquer possibilidade de conhecimento e nós nos tornamos prisioneiros do nosso próprio mundo subjetivo . Dessa maneira não é nenhuma surpresa o fato de Alice atravessar a floresta agarrado com um veado em silêncio absoluto pois se não há uma correspondência objetiva não há sobre o que conversar .

 

3.5 Alice e os gêmeos idealistas

 

Uma tentativa de ordenar o estranho mundo na qual Alice se encontra é praticada pelos gêmeos Tweedledee e Tweedledum . Ao olharem para o Rei Vermelho dormindo surge o seguinte diálogo com Alice :

 

"-Ele está sonhando agora- disse Tweedledee :- e sabe sobre o que ele está sonhando ?

Alice disse - Ninguém pode saber isso .

-Ora sobre você !- exclamou Tweedledee , batendo palmas com triunfo .-E se ele parasse de sonhar sobre você , aonde você imagina que estaria ?

-Aonde eu estou agora é claro - disse Alice .

-Você não!- retrucou Tweedledee com desprezo - você estaria em lugar nenhum . Ora você não passa de uma coisa no sonho dele ’

 

Aqui encontramos a filosofia idealista do Bispo Anglicano George Berkeley . Segundo Berkeley as coisas só existem se são percebidas mas a existência de um mundo objetivo é assegurado pelo fato de Deus estar observando tudo . Portanto uma àrvore continua a existir mesmo se eu deixar de olhar para ela porque Deus está a percebendo .

Todavia enquanto que na floresta sem nomes todos ficamos presos sem a existência de um mundo independente das nossas mentes , aqui a situação é mais devastadora pois o que existe é apenas um mundo de natureza idealista presente na mente de Deus . O que nós olhamos e acreditamos ter uma existência concreta na realidade é apenas uma ilusão . Não é o caso do platonismo que afirmava existir um mundo ideal por detrás do mundo material , mas a negação da própria existência do mundo material .

 

3.6 A Semântica do Grande Ovo Nominalista e a Morte da Comunicação

 

A seguinte conversa frustrante surge entre Alice e o Grande Ovo : Humpty Dumpty .

 

"-Eu não entendo o que você quer dizer com glória ,- Alice disse .

Humpty Dumpty sorriu com desprezo :

-É claro que você não entendeu, até eu te explicar , eu quis dizer aí está um argumento devastador !

-Mas glória não significa um argumento devastador ,-Alice protestou .

-Quando eu uso uma palavra ,- Humpty Dumpty disse , de uma maneira arrogante , ela significa o que eu quero que ela significa , nada a mais , nada a menos .

-A pergunta é - disse Alice ,-se você pode fazer palavras terem tantos significados diferentes

-A pergunta é ,-disse Humpty Dumpty ,-quem será o mestre , apenas isso.

 

Aqui Humpty Dumpty adota a posição nominalista na semântica , a visão que prevalece entre os empiristas lógicos , de que as palavras são apenas sons verbais e não tem correspondência nenhuma a existências objetivas a não ser aquelas definidas por quem as usa .

Na teologia isso torna-se importante porque trabalhamos com termos chaves ( Deus , pecado , salvação , perdão , Trinidade etc …) e muitas vezes não nos damos o trabalho de definir que queremos dizer com esses termos . Dessa maneira muitos dos grandes debates teólogicos , quando analisados profundamente não passam de discussões sobre como definir termos chaves .

Todavia levado ao extremo a posição de Humpty Dumpty nos conduziria ao silêncio absoluto , pois se não existe nenhum controle sobre como usamos as palavras nós todos iremos acabar falando línguagens completamente diferentes .

Uma saída engenhosa foi elaborada por Roger W. Holmes no seu artigo : A Alice do Filósofo no País das Maravilhas ."

"Em um certo sentido as palavras são os nossos mestres ou a comunicação seria impossível . Em outro sentido nós somos os mestres , ou não haveria poesia ."

 

Portanto a comunicação torna-se possível pois todos aderimos ao significado socialmente definido das palavras , mesmo se dessa maneira qualquer comunicação torna-se subjetiva , fruto dos sentidos socialmente negociados e culturalmente definidos das palavras.

 

 

4.0 O Conceito de "Nonsense" de Lewis Carroll

 

 

Um conceito muito importante nas histórias a respeito de Alice é a palavra inglesa "nonsense" que não tem equivalente no português . Literalmente o sentido da palavra "nonsense" é "sem sentido" e é usado para designar o uso de frases absurdas e paradoxais para efeitos cômicos . Todavia na obra de Carroll o uso de "nonsense" também tem implicações filosóficas e teológicas .

Basicamente o uso de "nonsense" por Carroll tem três dimensões :

 

4.1 O "Nonsense" Literalista

 

Nessa dimensão as palavras são interpretadas de uma maneira literal tão extremada que ocorrem situações absurdas como o seguinte diálogo entre Alice e o Rei Branco :

 

"-Não há nada como comer feno quando se está perto de desmair- ele disse enquanto mastigava.

-Eu imaginaria que seria melhor jogar agua gelada sobre si mesmo ,- sugeriu Alice - ou tomar sais.

‘Eu não disse que não havia nada melhor’ o Rei replicou .’Eu apenas disse que não havia nada como comer feno.’"

Teologicamente isso serve como uma alerta contra o fundamentalismo que tende a sempre buscar uma interpretação literal das escrituras .Existe todavia uma consequência linguística desse "nonsense"de proporções enormes .

O "nonsense" mostra que a mesma linguagem usada para formular frases "sérias" pode ser usada para formular frases absurdas . Mas surge então a pergunta de como podemos ter certeza a respeito da nossas frases "sérias" ? Como podemos ter certeza que a nossa ciência e a nossa sabedoria acumulada durante os séculos não é na verdade tão ridículo e absurdo quanto a conversa do Rei Branco ? Os habitantes do mundo das maravilhas e da terra do espelho negariam essa certeza a nós e zombariam de qualquer pretensão nossa à transcendentalidade da nossa linguagem .

 

4.2 O "Nonsense" Paradoxal

 

Nessa dimensão Carroll coloca juntos elementos que não tem relação nenhuma com efeito extremamente cômico . Um exemplo clássico são os versos abaixo extraídos do poema "A onça marinha e o Carpinteiro." declamado por Tweedledee :

 

"O sol brilhava no mar

Brilhando com todo o seu poder

E isso era estranho

Por que era meia noite

 

A lua brilhava chateada

Porque achava que o sol

Não tinha direito de estar lá

Depois do dia terminar

‘É Extrema falta de educação’ ela disse

‘Ele vir estragar a diversão’

 

‘A hora chegou ‘ a onça marinha disse

‘De falar de várias coisas :

De sapatos – navios – e selos

Repolhos e reis

Sobre porque o mar está fervendo

E se porcos tem asas .’"

 

Nesse poema Carroll zomba da nossa pretensão iluminista de querer estruturar e organizar o universo na qual habitamos . Ele mostra que essa organização pode ser feita facilmente de outra maneira com efeitos cômicos . Na realidade as nossas "Categorias ou Conceitos Puros do Entendimento" valorizadas por Kant como essencias no processamento da informação não passam de especulações a respeito de "repolhos e reis"

 

4.3 O "Nonsense" de "Jabberwocky"

 

Todavia o "nonsense" Carrolliano atinge o seu àpice no poema "Jabberwocky" considerado por críticos como um dos dez melhores poemas já escritos na língua inglesa . Aqui incluiremos apenas o primeiro verso :

 

" Twas brillig and the slithy tothes

Did gyre and gymble in the wabe

All mimsy were the borogroves

And the mome raths outgrabe . "

 

O essencial desse poema é que ele parece inglês , tem o som inglês , tem a estrutura gramatical do inglês , mas é escrita numa linguagem sem sentido . Aqui temos o nominalismo na sua forma extrema , as palavras são apenas meros sons , e qualquer comunicação objetiva é impossível .

 

 

Esse "nonsense" adotado por Carroll nos leva à narrativa bíblica da Torre de Babel . Nessa história conhecida os seres humanos buscam construir uma torre para chegar no céu . Descontente disso Deus desce e espalha a confusão de línguas mostrando como era absurdo e ridículo a pretensão humana de chegar à divindade .

Semelhantemente Carroll mostra como é absurdo e ridículo a nossa pretensão de qualquer conhecimento que seja absoluto ou objetivo , pois na realidade tudo que descobrimos por si só é sem sentido , "nonsense." Ou nas palavras de Francis Schaeffer :

 

"Os filósofos chegaram à conclusão que eles não iriam encontrar um círculo unificado rationalista que poderia conter todo pensamento , e na qual eles poderiam viver . Foi como se o rationalista descobrisse que estava preso numa sala redonda sem portas ou janelas , apenas a escuridão total ."

 

Tal attitude é refletida na descrição dos vários personagens com tendências filosóficas . O Gato de Cheshire não tem nenhuma forma corpôrea , o grande ovo nominalista é apenas um pretencioso , arrogante que sofre uma grande queda . Os gêmeos idealistas Tweedledee e Tweedledum são na verdade dois meninos mimados que brigam por qualquer besteira .

Teologicamente isso nos mostra que qualquer filosofia que não parte da revelação divina , que seja apenas racionalista em sua forma é vã e pretenciosa . O ser humano naufraga completamente quando deseja fugir da sua dependência de Deus pois ele é dependente da revelação divina para adquirir o conhecimento e da graça divina para obter a sua salvação .

Na análise do Livro de Gênesis alguns autores consideram a história da Torre de Babel uma mera etiologia destinada a explicar a existência de várias línguas diferentes ignorando o significado da história na teologia de Gênesis . Colocado antes do chamado de Abraão ela mostra o fracasso da tentativa dos seres humanos de alcançar a divindade em contraste ao desenrolar do plano da salvação na família de Abraão . Cabe a nós , como teólogos evangélicos , expôr o absurdo das filosofias humanas em contraste com a salvação oferecida de maneira gratuita por Deus .

 

 

 

 

5.0 O Comportamento de Alice como metáfora do dilemma do Seminarista

 

 

 

O comportamento de Alice face ao mundo estranho na qual ela se encontra é refletido muitas vezes no comportamento de seminaristas quando confrontados com as novas , e muitas vezes estranhas , idéias filosóficas e teológicas no seu curso . Um exemplo muito vivo disso é o debate entre Alice e os gêmeos idealistas . Esse diálogo tem duas principais características : o desespero e o desprezo .

 

5.1 Desespero

 

Quando confrontado com o idealismo de Tweedledee e Tweedledum a primeira reação de Alice é o desespero como ilustra o seguinte trecho :

 

"-Ora , não faz sentido você falar em acordar ele ,- disse Tweedledum ,- quando você é apenas uma das coisas no sonho dele . Você sabe muito bem que você não é real .

-Eu sou real!- disse Alice e começou a chorar .

-Você não se tornará real chorando- comentou Tweedledee :-não há razão para chorar.

 

Da mesma maneira é comum percebermos reações exaltadas e desesperadas entre seminaristas quando confrontados com idéias novas . Mas , parafraseando Tweedledee , nada muda com o desespero .

 

5.2 Desprezo

 

A segunda reação de Alice perante os gêmeos idealistas é o desprezo pelas idéias deles :

 

"-Eu sei que eles estão falando besteira- Alice pensou para si mesma -e é besteira chorar a respeito disso."

 

Muitas vezes existe a tentação de desprezarmos as idéias dos outros e ao invés de as debater simplesmente desprezar-lás como besteira . Dessa maneira nos isolamos num ghetto evangélico marginalizados dos grandes debates filosóficos da nossa era .

Pode ate ser que muitas das idéias defendidas pelos nossos opositores sejam realmente "besteira" mas isso não nos livra da obrigação de as discutir e as refutar .

 

Sendo o desespero e o desprezo adotados por Alice soluções insatisfatórias iremos encerrar o nosso trabalho com um exemplo positivo de engajamento teológico e filosófico , a do Apóstolo Paulo .

 

 

6.0 O Discurso de Paulo no Areópago em contraste com Alice

 

 

O discurso de Paulo aos intellectuais gregos no Aerópago (Atos 17: 15-34) poderia em si só ser tema de uma monografia , porém nosso objetivo será contrastar a atitude de Paulo com a atitude de Alice e a de muitos seminaristas . Como Alice e qualquer pessoa que entra num seminário em Atenas Paulo encontra um mundo estranho ,o que I . H Marshall chama-de :

 

"uma mistura de idolatria supersticiosa e filosofia iluminada"

 

Mas ao contrário de se esconder na "cidade da Filosofia" Paulo enfrenta os filosofos e intellectuais no seu próprio terreno . De exemplar no discurso de Paulo temos os seguintes elementos :

 

6.1 Coragem e Autoridade

 

Em contraste com o desespero e o choro de Alice Paulo não hesita em pregar a palavra de Deus com autoridade mesmo sendo desprezado e mal-entendido pelos atenienses conforme o seguinte trecho indica :

 

"Ora, alguns filósofos epicureus e estóicos disputavam com ele. Uns diziam: Que quer dizer este paroleiro? E outros: Parece ser pregador de deuses estranhos; pois anunciava a boa nova de Jesus e a ressurreição."

 

6.2 Respeito

 

Enquanto que Alice apela para o desprezo pelas idéias de seus opositores Paulo mostra respeito e compreensão . Em contraste com muitos hoje em dia , Paulo consegue ver o positivo nas idéais dos seus opositores e que pode ser usado para transmitir a mensagem do evangelho :

 

"porque nele vivemos, e nos movemos, e existimos; como também alguns dos vossos poetas disseram: Pois dele também somos geração."

 

A referência aos poetas gregos mostra a disposição de Paulo em , ao invés de rejeitar completamente a cultura grega , utilizar elementos da própria cultura dos seus leitores para pregar a mensagem divina .

 

6.3 Relevância Cultural

 

Outro elemento a ser louvado no discurso de Paulo é a sua disposição em transmitir a mensagem cristã numa maneira que seja relevante aos seus ouvintes . Os filósofos epicureus acreditavam que as divindades ,se existissem , não interferiam na vida humana enquanto que os estóicos adotavam uma visão panteística . Paulo ,segundo Marshall :

 

"utiliza as perspectivas dos filósofos no seu ataque contra as crenças da população de Atenas ; os epicureus atacavam a crença supersticiosa e irracional nos deuses , expressos na idolatria enquanto que os estóicos enfatizavam a unidade da humanidade e sua ligação com Deus , e a consequente obrigação moral do homem . O que Paulo faz é apoiar os filósofos e depois demonstrar que eles não foram longe o suficiente."

 

Paulo não compromete a mensagem cristã no seu discurso de Atenas mas ele a estrutura e apresenta de uma maneira que seja culturalmente compreensível e relevante para os seus ouvintes . Muitas vezes não temos sucesso no nosso evangelismo porque apresentamos a nossa mensagem de uma maneira que não pode ser compreendida . Se queremos ser relevantes precisamos adotar uma terminologia e uma abordagem contextualizada que possa ao mesmo tempo ser fiel à mensagem do evangelho .

 

7.0 Conclusão

"A vida , o que ela é senão apenas um sonho?"

 

O que resta a ser dito depois de termos caminhado com Alice pelo País das Maravilhas e a Terra do Espelho ? Depois de termos conversado com lagartos , encontrado gêmeos idealistas e debatido com um ovo nominalista qualquer conclusão será por natureza um anti-clímax. Após o poder do "nonsense" como aventurar-se a trazer qualquer síntese ?

Todavia se como o Gato de Cheshire afirma "somos todos loucos aqui" farei a loucura de tentar tirar duas conclusões teológicas a respeito das histórias de Alice .

 

7.1O Fracasso de qualquer projeto humanista ou racionalista

 

Carroll zomba das nossas tentativas de construir sistemas de pensamento que partam da nossa existência como seres humanos . O "nonsense" não deixa dúvidas :as nossas pretensões à objetividade não passam de absurdo , conversas sobre "repolhos e reis".Desse modo Carroll pode ser considerado como visionário prevendo o ambiente intellectual do final do século na qual o projeto iluminista e modernista está em frangalhos .

 

      1. A Necessidade de uma dependência completa de Deus

 

O fracasso do projeto humanista e racionalista nos lança na completa dependência de Deus . O caos e o absurdo cessam apenas quando se confia num Deus amoroso e criador . O conhecimento e a comunicação são apenas possíveis quando se têm a consciência de que Deus se revela até nós e comunica-se conosco através de sua Palavra .

 

A situação dos orfãos do modernismo é expressa na música "Bullet with Butterfly Wings"

 

"Agora eu estou nú , não passo de um animal ,… mesmo assim eu acho que eu posso mostrar todo o meu charme frio , Apesar de minha ira eu não passo de um rato na gaiola, E alguém dirá que os perdidos nunca poderão ser salvos … e eu ainda acredito que não posso ser salvo."

 

Aos que estão perdidos no caos e no desespero devemos pregar a mensagem do evangelho , a única que pode trazer significado à existência humana .

 

Façamos como Paulo e caminhemos destemidos pelo País dos Filósofos.

 

 

Bibliografia

 

BROWN , Colin , Filosofia e Fé Cristã , Vida Nova , 1983

CHAPMAN, Thomas Allain , The Annotated Alice ,Rapid Results College , 1994

COTTERELL , Peter ,Mission and Meaningless , SPCK , 1990

GARDNER, Martin , The Annotated Alice , Penguin , 1970

GEISLER ,Norman L e FEINBERG , Paul , Introdução à Filosofia , Vida Nova , 1983

GRENZ , Stanley J , Pós-Modernismo , Vida Nova , 1997

MARASCHIN , Jaci (Organizador) , Teologia sob limite , Aste , 1992

MORRIS , Leon , The Acts of the Apostles , Tyndale , 1981

O’NEILL , J.C. , The Theology of Acts , SPCK , 1961

SCHAEFFER , Francis , Trilogy , Hodder & Stoughton , 1990.